Legislações e políticas públicas voltadas para a primeira infância

Laura Levy, mestre em Bioética é, também, coordenadora e professora universitária em capacitação na Primeira Infância. Com amplo conhecimento na temática, ela falou com exclusividade para a Revista Abrig Digital sobre as políticas públicas voltadas para a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, sobretudo nos primeiros anos de vida. Confira a seguir.

ABRIG: Na seara brasileira, como é trabalhado o tema da atenção à Primeira Infância? E quais os avanços legislativos que tivemos nos últimos anos?


LAURA LEVY: Em âmbito interno, a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo período aos direitos e garantias destinadas às crianças e adolescentes. Estabeleceu como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente seus direitos com absoluta prioridade.


Para operacionalizar o que foi estabelecido no Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi promulgado por meio da Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990, instituindo que a criança e o adolescente fazem jus a todos os direitos fundamentais à pessoa humana: os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Acrescentando, ainda, como prerrogativa à proteção integral, a responsabilização da família, da comunidade, da sociedade e do Estado por sua garantia.


Como desdobramento desse movimento de construção de mecanismos políticos para a garantia dos direitos das crianças, a lei brasileira mais recente, de 2016, conhecida como o Marco Legal da Primeira InfânciaLei nº 13.257/2016, tem como finalidade principal a promoção do desenvolvimento integral das crianças de 0 a 6 anos. Para isso, determina como prioridade a formulação de políticas públicas e programas para esse grupo social, bem como a formação de todos os profissionais que com ele atuam.


Para garantir os direitos das crianças, o Marco Legal estabelece a criação de comitês intersetoriais de políticas públicas para a primeira infância, que visam operacionalizar a participação social e a descentralização das ações, e fomentar a implementação de Planos Estaduais e Municipais para a Primeira Infância.


ABRIG: Quais contribuições os avanços científicos e o conhecimento da neurociência trouxeram para o atendimento à Primeira Infância?


LAURA LEVY: O Plano Nacional pela Primeira Infância destaca o papel estratégico das pesquisas sobre desenvolvimento humano, pois seus resultados impactam a “formulação das políticas, negociação de orçamentos públicos, priorização de programas e definição das ações para a primeira infância”.


É na primeira infância que o cérebro encontra seu maior desenvolvimento, também é nesta fase que ele é mais vulnerável às influências do ambiente. Com o advento da neurociência foi possível aumentar o conhecimento sobre o que se passa no cérebro desde o início da vida, corroborando e aprimorando vários achados científicos, permitindo compreender melhor a especificidade do desenvolvimento na primeira infância e perceber que as experiências vividas se inscrevem nos genes, donde nasceu a Epigenética


Assim, essas compreensões, possíveis a partir dos avanços da ciência e dos estudos sobre o desenvolvimento humano, bem como da neurociência, permitiram remodelar o tratamento dado à primeira infância, a ser aplicado e valorado na elaboração das políticas públicas para se garantir o efetivo desenvolvimento do ser humano.


ABRIG: Em termos econômicos, por que investir na Primeira Infância?


LAURA LEVY: Investir na primeira infância é colocar em prática a regra da prioridade absoluta (CF, art. 227), possibilitando o mais cedo possível que as crianças tenham acesso aos direitos necessários a seu desenvolvimento. Assim cumpre-se o dever constitucional de promover efetivamente a cidadania, valorizando a maior riqueza de uma nação, que são seus cidadãos.  


Foi necessário traduzir em equação matemática o valor do retorno do investimento na primeira infância para esta ganhar força na agenda internacional das políticas públicas. Essa foi uma contribuição realizada pelo Prêmio Nobel em Economia. O americano James Heckman, juntamente com o economista português Pedro Carneiro e o economista brasileiro Flávio Cunha, a partir de seus estudos, concluíram que cada dólar investido na primeira infância gera um retorno de 7 a 10 dólares no futuro e representa a melhor estratégia de ruptura do ciclo de pobreza e redução da desigualdade social que onera em políticas compensatórias a economia de muitos países.


Assim, investir em programas de suplementação alimentar, educação e apoio aos pais, inclusive antes de a criança ingressar na educação infantil, favorece o aproveitamento das ofertas que se realizam pelo sistema educacional e consequente autonomia na vida adulta, reduzindo custos com saúde pública secundária e terciária, assistência social, sistema prisional, entre outros.


ABRIG: Como está sendo o engajamento dos entes públicos para garantir a atenção à Primeira Infância? E, dentro desse engajamento, como estão sendo desenvolvidas as políticas públicas?


LAURA LEVY: Na trajetória de desenvolvimento dos direitos da criança no Brasil, busca-se integrar redes intersetoriais para participar da implementação de uma lei inédita no mundo: a Lei 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância. Essa nova legislação visa reforçar as conquistas anteriores expressas especialmente no Artigo 227 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, ancorados na Convenção sobre os Direitos da Criança.


A perspectiva que se apresenta é de superação da visão tradicional das crianças como receptáculos vazios. O que se faz necessário é a mudança de paradigma. Compreender a mudança de paradigma representada pelo Marco Legal da Primeira Infância como a passagem da era dos direitos negativos — tais como não morrer prematuramente, não passar fome, não ser vítima de maus-tratos ou negligência, para a era dos direitos positivos — tais como o direito ao brincar, a ser estimulada de acordo com sua faixa etária, a desenvolver seu potencial físico, emocional, social e cognitivo.


Outra mudança de paradigma, nessa concepção, é a compreensão do recurso destinado às ações para primeira infância como ‘investimentos’, e não como ‘custos. Nesse contexto, a adesão por parte dos estados e municípios brasileiros vem numa caminhada crescente, em que pese diminuta, diante do expressivo número de municípios existentes, mas merecem aplausos as gestões que já se comprometeram e as que já vêm em elaboração de seus Programas à Primeira Infância, bem como aos Planos Estaduais e Municipais pela Primeira Infância.


ABRIG: Podemos dizer que o país se preocupa com a Primeira Infância a partir de uma perspectiva de política de Estado?


LAURA LEVY: No Brasil existem algumas iniciativas governamentais e não governamentais que enfocam o ambiente e as competências parentais para o pleno desenvolvimento das crianças. Contudo, as avaliações de impacto desses programas e a adoção deles como políticas públicas, como dito, ainda são incipientes.


A Estratégia de Saúde da Família, por exemplo, pode ser mencionada como um modelo de assistência, inserido no Sistema Único de Saúde. Existem também iniciativas, complementares às políticas públicas sociais (como o Sistema Único de Assistência Social - SUAS) e de saúde, que partilham dos mesmos instrumentos e focos. Um exemplo é o Programa Infância Melhor (PIM), iniciado em 2003 no Estado do Rio Grande do Sul, que ressalta a importância da parentalidade positiva para o desenvolvimento da criança.


Atualmente, por influência do Marco Legal da Primeira Infância foi implantado em âmbito nacional o Programa Criança Feliz. Este programa está vinculado ao Ministério da Cidadania e tem como objetivos: promover o desenvolvimento humano na primeira infância; apoiar a gestante e a família na preparação para o nascimento; promover o cuidado à criança na primeira infância e a sua família, em situação de vulnerabilidade; colaborar com o exercício da parentalidade; estimular o desenvolvimento de atividades lúdicas focar seu atendimento prioritariamente nos primeiros mil dias de vida, por meio de visitação domiciliar.


A adesão às diretrizes do Programa Criança Feliz é voluntária aos estados e municípios e o programa atende centenas de milhares de crianças e gestantes. Apesar das dificuldades para converter um programa em política pública, o PCF conseguiu avançar e se constitui em uma política pública implementada com sucesso no Brasil, a qual podemos caracterizar como uma política de estado.


ABRIG: Quais as medidas poderiam ser tomadas para que haja maior atenção à Primeira Infância e garantia do cumprimento das determinações previstas no Marco Legal da Primeira Infância?


LAURA LEVY: Compreender a realidade brasileira, com a sua diversidade e diferenças regionais, é fundamental para desenhar políticas públicas capazes de reverter a pobreza na infância e na adolescência e igualar oportunidades. É urgente que os gestores públicos da União, dos estados e dos municípios desenvolvam ferramentas e estratégias para pensar respostas precisas e oportunas para crianças e adolescentes no Brasil.


Uma das ferramentas de maior impacto é a formação e capacitação dos gestores e demais servidores das áreas técnicas envolvidas na primeira infância. Preocupado com isso, o Centro Integrare, que desenvolve seu trabalho no desenvolvimento humano, a partir dos eixos da saúde, da educação e da cidadania, no qual eu desempenho o cargo de Diretora de Educação, auxilia na promoção dessa formação direcionada aos agentes públicos no intuito de disseminar o conhecimento e enfatizar a importância do tema, engajando o tomador de decisão no paradigma do desenvolvimento humano.


Outro aspecto, que merece destaque, é da necessidade de divulgarmos o tema, levando ao conhecimento da sociedade, que é agente e destinatário de políticas de públicas.


Aqui, faço destaque, ao curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas Aplicadas à Primeira Infância, oferecido pela Verbo Jurídico, entidade educacional de Porto Alegre/RS, no qual sou coordenadora e professora, e tem como objetivo promover o entendimento dos conceitos fundamentais das Políticas Públicas aplicados à Primeira Infância, oportunizando uma reflexão sobre as mudanças e os desafios enfrentados pelos profissionais entrelaçados na área, assim como os agentes públicos, de modo a modificar o conceito de atuação governamental e de planejamento, elaborando o conceito amplificado e colaborando na formação profissional daqueles que labutam nas áreas de interface da primeira infância.


*Os conteúdos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da Abrig. 

compartilhe

navegação de notícias

notícias recentes

Tags

melhores escolhas dos leitores

categorias

notícias mais populares

siga-nos